quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

CRÔNICA DE UMA MADRUGADA QUALQUER DE CRIME NO RIO

A história que vou contar hoje, é uma história de investigação, de polícia, de crime, de Rio de Janeiro... Ela aconteceu de verdade. E aconteceu recentemente. Não vou dizer o dia porque não quero identificar os personagens.

Nesse dia qualquer, acordei às 4h20 da manhã, sobressaltado, com o barulho de metal sendo despedaçado na rua. Sempre quando escuto isso, me preocupo de que estão invadindo o meu prédio. Afinal, invasão de prédios durante a madrugada para furto de produtos de metal (e outras coisas mais valiosas como bicicletas) virou algo rotineiro nos últimos anos, na região da Tijuca e em vários outros pontos da cidade do Rio de Janeiro.
Olho pela janela e vejo dois ladrões, na calçada sob o meu edifício, estraçalhando o que parece ser uma janela de alumínio, recém-furtada de algum lugar que não sei qual é. Em questão de segundos, eles desmontam toda a esquadria e saem com os pedaços de alumínio sobre os ombros pela rua.
Resolvo fazer algo que já pensava em fazer há algum tempo. Troco de roupa, pego a chave do carro e saio pela rua, tentando ver onde os ladrões vão levar aquele material. Perco-os de vista, mas tenho uma ideia de onde eles podem estar indo. Então, faço a volta na Uerj, e sigo em direção à Mangueira.
Já na Uerj vejo não aqueles que desmontaram a janela de alumínio, mas outras três pessoas diferentes, carregando cada uma, seu butim de uma madrugada sem lei no Rio de Janeiro, numa espécie de procissão criminosa rumo ao ganho financeiro do dia. Um deles, tem apenas uma viga de metal, mais na frente outro é mais ousado. Carrega algo do tamanho de um portão em cima da cabeça.
Exatamente, do outro lado da rua, há uma patrulha da PM. Um dos policiais ronca dentro do carro. O outro está escondido atrás do veículo (mas já vou chegar neles).
Aproveito que o sinal fecha, entre a São Francisco Xavier e a Radial Oeste, para dar um tempo pra ver onde aqueles homens vão despachar suas mercadorias furtadas da casa de alguém. Eu já estava filmando o homem carregando o trambolho na cabeça, mas resolvo agora filmar o cidadão que carrega a humilde viga de metal. Não escondo o celular, faço questão que ele veja que estou gravando a fuça dele.
Ele se abaixa e pega uma pedra para jogar no meu carro. É a deixa para eu acelerar o carro. Estou numa “investigação” mas não quero ter meu carro danificado.
Baixo o celular para dirigir mas logo vejo para onde eles estão indo. Uma pequena garagem no que sobrou da favela do Metrô (aquela que deveria ter sido desmontada e seus moradores direcionados para moradias dignas). Está todo mundo ali. Os ladrões e os receptadores, a 100 metros de uma patrulha da PM. Sem esconder nada.
Faço a volta e retorno à Uerj para conversar com os policiais. Na verdade, com o policial, já que um deles aproveita o horário de trabalho para dormir. O PM fica meio ressabiado atrás da viatura quando eu saio do carro. Faço questão de dar bom dia antes que ele me confunda com um bandido (não preciso dizer o que pode acontecer nesses casos).
E começo a explicar tudo o que vi pro PM. Sua primeira reação, quando eu disse que várias pessoas estavam passando por ali com produtos de metal furtados, foi: “Por aqui não passou ninguém não”.
“Como não? Acabei de filmar um cara passando com um pedaço de metal. Ele até pegou uma pedra pra tacar no meu carro... Aqui em frente, do outro lado da rua. E mais. Eles estão indo prali, um ferro-velho ali na favela do Metrô”.
Quase falo, se você sair daí de trás da viatura e ir até o meio-fio, vai ver toda a trambicagem rolando solta...
Ele diz que não pode fazer nada. Tem que ligar pro 190.
Eu já sabia que ele não ia fazer nada. Ele tá só querendo ficar sossegado atrás da viatura até a hora de acabar seu turno. E ele não vai acordar o dorminhoco dentro da viatura pra checar uma denúncia dessas...
Respondo que não vai adiantar nada. Quando o 190 acionar uma patrulha, o ferro-velho já vai ter fechado. Então vou pra DP.
Acredite. Não ando nem mais 100 metros. A 20a DP, de Vila Isabel, fica na rua Luís de Matos, uma rua que desemboca quase em frente de onde o homem com a viga de metal me ameaçou com uma pedra.
Antes de entrar na delegacia, vejo um grupo de PMs parados em frente a DP, talvez uns cinco ou seis. Já imagino que vou ter que esperar algumas horas pra ser atendido, porque penso que teve alguma operação policial e que eles devem estar fazendo o registro de ocorrência.
Mas não. A delegacia está vazia. Os PMs só tão fazendo hora ali mesmo. Provavelmente também passando tempo até seu turno acabar.
Dentro da delegacia, um sujeito sentado, de calças de moleton e chinelos Rider (ou algo do tipo).
“Posso ajudar?”
Então explico tudo o que vi, mais uma vez. Falo que logo ali, está rolando um flagrante daquilo que virou uma pandemia no Rio de Janeiro, antes da covid. O furto de produtos de metal não ocorre apenas dentro de edifícios. Todos os dias, cabos de luz e de sinais de trânsito são afanados em busca de um ganho rápido.
É só chegar ali e dar o flagrante de receptação.
Ele me encara, com um olhar condescendente, mas sem qualquer sinal de que vai levantar a bunda do sofá pra fazer qualquer coisa.
“Você mora onde?”
Digo a rua.
“Mas eu não fui furtado. Eu só vi os caras desmontando a janela e resolvi descobrir onde eles vendiam essas coisas. Tenho medo que invadam meu condomínio”
Expliquei que meu prédio já tinha sido invadido algumas vezes. Minha preocupação não é com bens materiais. Meu medo é que eles arranquem alguma coisa elétrica ou de tubulação de gás e isso coloque em risco todos os moradores. Digo que já aconteceram coisas assim na região.
Só quero que ele se empenhe em começar a fazer alguma coisa. Que ele vá até o ferro-velho, sei lá. Na verdade, a essa hora, eu já me sinto um idiota paranoico, que está fazendo uma tempestade num copo d'água por causa de alguns furtos bestas na região.
Digo onde está o ferro-velho. E então sinto o alívio imediato na cara do inspetor.
“Ah, ali? Na Favela do Metrô?”. Era a desculpa que ele queria para voltar pro sossego do seu celular. “Ali nem é área nossa. É área da 18a DP”...
A 18a DP fica na Praça da Bandeira, a mais de 4 quilômetros dali. Mas, enfim é área de outra DP, o inspetor podia ficar em paz com a sua consciência.
E o inspetor conclui. “Mas nem adianta fazer nada. A gente já prendeu o dono desse ferro-velho e ele tá solto de novo. Os policiais aí acabaram de trazer um vagabundo que tava roubando essas coisas, mas não vai dar em nada. Só mesmo matando esses filhos da puta”.
“Olha, vou te dizer uma coisa”, eu respondo. “Se a Polícia Civil fizesse o que tô fazendo, conseguia resolver melhor. Pega uma madrugada aí, monta uma campana numa dessas ruas. Pega os caras roubando, filma tudo, segue eles até o ferro-velho. Filma eles vendendo os produtos furtados e pronto. Já tem um caso pra Justiça. Realmente pegar esses pés-rapados e trazer pra Delegacia não vai adiantar nada. Mas o ferro-velho tá ali, funcionando pertinho”.
Ele só concorda. E me despacha em silêncio. Seus olhos já querem voltar pro celular.
Já são umas 15 pras cinco. Tudo aconteceu muito rápido, mas não quero mais perder tempo. Sei que dali não vai sair nada. Percebo que ele está sozinho ali. Não entendo de plantões policiais, mas imagino que policiais não devem cuidar sozinhos de uma delegacia. Será que os colegas estão ali dormindo? Será que estão dormindo em casa? Será que estão em diligência num investigação super relevante? Será que estão investigando os receptadores de metal furtado (hahaha)? Não sei. Mas também não pergunto mais.
E sozinho ele não vai fazer nada.
Saio na rua e faço uma última tentativa, com os PMs que estão conversando do lado de fora da delegacia. Eu sei, sou um sonhador... Mas sei lá, eles estão num grupo maior do que o PM escondido atrás da viatura. De repente, eles querem ação. Vai que...
Interpelo os PMs e, mais uma vez, explico tudo. Um deles, que parecia um dublê mal-ajambrado de Vin Diesel, nem deixa eu terminar de falar.
“Irmão, a gente acabou de prender uns 6 aí... Não adianta ir nesse ferro-velho, não. O cara tá só comprando, não tá roubando...”
“Mas não seria receptação?”, eu tento, na esperança de que ele saiba o que é receptação.
Ele é pego meio fora de guarda...
“E também tem uma lei nova, justamente por causa desses casos de furto. Os produtos precisam ter comprovante de procedência, nota fiscal, essas coisas”. Na verdade, não conheço muito a lei, mas sei que aprovaram algumas restrições para ferros-velhos, devido às denúncias mostradas diariamente na TV Globo. A lei em questão é Lei Complementar Municipal 236/2021, mas na hora eu não sabia.
E aí vem aquela famosa saída pela tangente.
“É, cara, tem que falar com a Polícia Civil mesmo...”
Ele talvez não tivesse percebido, mas eu tinha acabado de sair de uma delegacia e tudo que encontrei foi um agente de pijamas na recepção.
Chego em casa antes das 5h. Às 6h tenho que começar a trabalhar, então não vou conseguir dormir. Numa última tentativa pra não parecer um completo fracassado, ligo pro 190. Explico a história de novo, dou a localização do ferro-velho e, enquanto tento explicar os perigos dessas invasões e por que estou tão preocupado, o operador me corta, dando-me um protocolo e dizendo que vai dar encaminhamento pra minha denúncia.
Desligo o telefone, preparo um toddy e vou pra varanda. Ali de cima, olho pra calçada. Pelo menos agora não tem ninguém fazendo barulho, enquanto desmonta uma janela roubada.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

O POLICIAL E O PEDESTAL DA VILA KENNEDY

Na semana passada, vimos o vídeo (veja abaixo) de um policial dando bronca em um morador de comunidade do Rio (Vila Kennedy) que estava na garupa de uma moto com um pedestal de microfone.




Na lógica enviesada do policial, o morador estava se arriscando a levar um tiro da polícia porque o pedestal parecia um microfone.

À primeira vista, parece apenas um policial preocupado com um cidadão. Mas, refletindo-se um pouco mais profundamente, isso é sintoma de uma polícia que trabalha de forma errada e homicida.


O policial, em hipótese alguma, poderia atirar em alguém porque confundiu um pedestal com um fuzil. Policial não pode atirar em alguém apenas porque está com uma arma, sem que haja uma ameaça clara à sua vida ou à vida de terceiras pessoas, quem dirá atirar em alguém que está com um objeto que parece uma arma.

Policial também não pode atirar em ninguém que pareça suspeito, alguém que fuja de uma blitz ou em alguém que esteja cometendo um crime sem que esteja colocando a vida de ninguém em risco imediato.

Alguns dias depois, uma menina de 8 anos foi assassinada no Complexo do Alemão. Tudo indica que os policiais atiraram em uma moto com “suspeitos” (sob a alegação não sustentada até o momento de que foram alvejados) e o tiro foi parar numa Kombi e nas costas de uma criança.

Alguém aí percebeu como as duas coisas estão conectadas? O policial dizendo que o morador não pode andar com um pedestal e uma criança morta dentro de uma kombi?

Ambas são resultado de um modus operandi violento da polícia, que por sua vez é fruto de uma sociedade violenta e de um governador homicida (que manda policiais atirarem na cabecinha de pessoas).

Por mais que você esteja de saco cheio da violência, assim como eu e 99,99% dos brasileiros estão, não é assim que a violência será resolvida. Aliás, se você for sensato o suficiente verá que isso está apenas amplificando a violência, sem qualquer sinal de aplacá-la no futuro. Afinal, se o Estado não tivesse atirado para acertar um suposto bandido, a violência contra a criança do Complexo do Alemão, por exemplo, não teria ocorrido.

A menina foi morta, provavelmente pelo Estado. E os bandidos do Complexo do Alemão? Bem, esses continuam por lá, provavelmente com a anuência da corrupção estatal.

A FALÁCIA DE QUE TRÁFICO EXISTE PORQUE BRIZOLA NÃO DEIXAVA POLÍCIA ENTRAR NAS FAVELAS



Um jornalista tem a pouca vergonha de dizer que os traficantes ainda mandam nas favelas do Rio de Janeiro porque o governador Leonel Brizola "não deixava a polícia entrar na favela" (veja vídeo abaixo).




Deixa eu dizer uma coisa para esse profissional que ou é mal informado ou mal intencionado.

O início da consolidação do tráfico de drogas no estado do Rio de Janeiro se deu entre o fim da década de 70 e o início da década de 80, antes do governo Brizola (quem viu o filme Cidade de Deus, pode ver que ocorreu uma guerra na comunidade pelos pontos de vendas de drogas e isso era na década de 70).


Brizola foi governador de 1983 a 1987 e de 1991 a 1994. Independente de Brizola ter acertado ou errado em sua política de segurança, fora desses períodos, todos os governadores (e eu digo todos mesmo) apostaram na política de confronto, em que a polícia encarou o combate à criminalidade como uma guerra.

Eu pergunto para Lacombe se ele sabe qual foi o resultado das políticas de segurança que apostaram no embate frontal contra traficantes armados nas favelas nos anos de 1987 a 1991 e de 1994 a 2019...

Acho que ele e todos sabem a resposta. Se tivesse dado certo, não teríamos hoje um governo como Witzel fazendo a mesma coisa que todos os outros governadores fluminenses fizeram nos últimos 40 anos.

E com certeza Agatha não teria morrido.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

MAIS UMA CRIANÇA MORRE PORQUE GOVERNO INSISTE EM CONFUNDIR SEGURANÇA PÚBLICA COM GUERRA

Agatha é uma menina de 8 anos que morreu atingida por um disparo de arma de fogo.

Ela é a quinta criança morta no Rio de Janeiro, vítima de um tiro ocasionado por uma operação policial. Moradores dizem que a polícia atirou contra um suspeito e a bala atingiu a Kombi onde estava a criança, sem que houvesse uma troca de tiros.

É a quinta criança que morreu por causa de uma política de pseudossegurança que é calcada simplesmente no confronto armado.

E sabe por que nossa política é apenas calcada no confronto? Porque é uma política fácil de se fazer, porque atende aos anseios sanguinários da imprensa e de uma sociedade ignorante, porque não precisa atacar as causas da violência e, não menos importante, porque permite que todos os esquemas de corrupção envolvendo agentes do Estado continuem.

É mais fácil vender a imagem de que estamos em guerra e colocar a polícia todo dia entrando na favela e matando meia dúzia do que resolver problemas.

Todo mundo sabe que isso não resolve. Vivemos essa situação de confronto armado há décadas. Já tivemos governador dizendo que ia acabar com a violência em seis meses, já teve governador que disse que ia acabar com o tráfico até o fim do mandato, teve governador pagando bônus salarial pra policial que matasse mais gente e agora temos governador que fala pra atirar em qualquer que estiver portando uma arma.

Em comum a todos eles está o discurso fácil, a não resolução do problema e um número grande de mortes de inocentes nas costas.

É fácil pro governador mandar a polícia entrar todo dia na favela, prender um pé rapado, apreender uma arma velha e meia dúzia de trouxinhas de maconha. Não é ele que está se expondo ao risco de tomar um tiro.

É fácil pra sociedade como um todo aprovar esse teatro. Dá a sensação de que aquele bandido não vai mais te aceitar e não é seu filho que está morrendo nessa brincadeira de guerra.

E o policial? Bem, pra ele não é fácil participar desse teatro. Ele se expõe à morte toda vez que se confronta com criminosos armados. Mas muitos deles foram levados a pensar que estão lutando contra o crime e que vão vencer essa guerra se todo dia matarem os bandidos.

Bem, muitos já perceberam que isso não leva a nada. Mata um, entra outro no lugar. Sempte foi assim e se nada mudar na nossa sociedade, sempre será. Alguns deles são cínicos o suficiente pra ganhar dinheiro com essa pseudoguerra, vendendo armas, extorquindo bandidos, negociando proteção, e ainda assim achando que tem o direito de assassinar um criminoso de vez em quando.

Enfim, enquanto encararmos criminalidade como guerra muitas Agathas vão morrer.

sábado, 20 de janeiro de 2018

UM SÁBADO QUALQUER... NA MANGUEIRA

No dia 13 de janeiro de 2018, estava de plantão na redação. Não era um plantão qualquer. Havia o velório e enterro de um grande amigo de amigos queridos. Um delegado, amigo dos meus amigos, havia sido assassinado. E, como repórter, não podia me furtar de cobrir a história, por mais doloroso que fosse.

Não fui ao velório e ao sepultamento para explorar a dor da família e dos amigos. Sou contrário a isso, sempre fui e sempre serei. Reportar a dor dos familiares, apenas para conseguir uma foto ou depoimento chorosos não presta para nada além da curiosidade mórbida de espectadores que sentem alívio em ver que há pessoas numa situação pior que eles próprios.

Fui para lá com o objetivo de falar com o delegado que investigava o caso e com as autoridades. Sabia que elas estariam lá, não para se solidarizar com os enlutados, mas para dar respostas inúteis a problemas que eles não conseguem resolver.

Como se isso não fosse ruim o suficiente para um plantão de sábado, uma operação policial ocorria na Mangueira. A coisa aparentemente era feia. Moradores tinham descido para a rua Visconde de Niterói e feito barricadas incendiárias. Um “suspeito” havia ficado ferido, bem como três policiais militares.

Havia um intervalo entre o velório e o sepultamento. Corri para a Mangueira, que fica mais ou menos no meio do caminho entre o centro da cidade (local do velório) e o Caju (local do enterro).

Fiquei menos de meia hora no local. Mas foi o suficiente para vivenciar o “sábado qualquer” na Mangueira.

O cheiro de fumaça de plástico e borracha incediada invadia minhas narinas, enquanto via um capitão PM alucinado, falando pelo rádio, dentro da viatura.

- Capitão! – tento uma abordagem.

Nada, ele me ignora. É a autoridade do pedaço. Com sua pistola e uma tropa de comandados, armados com fuzis, ele manda e desmanda na parada.

Ele encerra a comunicação pelo rádio e sai da viatura.

- Capitão! – tento mais uma vez – Major, coronel... – tento elevar seu ego, sem sucesso.

Ele não quer falar comigo. Ele quer experimentar o êxtase do poder, ainda que fugaz. Ele quer apreciar uma autoridade que o Estado lhe concedeu durante aquele “sábado qualquer” na Mangueira.

O capitão mal sai da viatura e já parte em direção a uma das ruas que ligam a Visconde de Niterói à comunidade. Ele sai em disparada, na direção de três PMs, subalternos, que também se regozijam com a autoridade que lhes foi concedida pelo Estado. Aquele é o momento de extravasarem suas frustrações (capitão e subalternos). O salário de merda, os atrasos no pagamento, o governador que foi vice e companheiro do ex-governador condenado por corrupção (o qual ele é obrigado a servir), o risco desnecessário a que ele é submetido cotidianamente. Tudo isso vem à mente quando são levados à Mangueira naquele sábado qualquer, para “combater o tráfico”...

Hahaha... Combater o tráfico. Essa é a expressão que a PM usa mas que não faz qualquer sentido. Combater o tráfico? Hahahahaha... Não seria melhor dizer, trocar uns tirinhos numa favela mesmo sabendo que nada vai mudar?

Voltando ao capitão, ele corre para junto de seus subordinados, que apontam suas pistolas e fuzis para dentro da favela, escondidos atrás de uma parede, apenas apontando suas cabeças para a viela.

Eu acompanho tudo de perto. Os moradores estão meio indecisos. Eles estão nos bares bebendo, mas sabem que alguma coisa pode acontecer. De uma hora para outra, um tiro pode acabar com suas vidas. Um comerciante fechou as portas de sua vendinha. Não quer levar problemas para dentro da sua loja.

Os PMs subalternos gritam, alucinados como o capitão, para alguém que caminha pela viela, mas que, de onde estou, não consigo ver quem é.

- Vem pra cá, porra! Vai fugir não, neguinho! – um dos PMs grita. Não me lembro se é um soldado, cabo ou sargento.

“Fudeu! O tiro vai comer aqui!”, eu penso. Mas já passei por isso. Tiro não falta em ações policiais nas favelas do Rio. Nos meus 15 anos como jornalista, já presenciei vários outros. Olho para os carros, as paredes. Visualizo onde posso me proteger, caso minhas previsões se confirmem.

A arma do PM está apontada para a viela. Ele deve estar gritando com um bandido armado, no outro extremo da rua.

“Caralho! O que estou fazendo aqui? Tenho um filho de cinco anos agora. Não posso mais brincar de correspondente de guerra”, penso enquanto olho para o estressado PM, com sua pistola em riste.

O PM sai de trás do muro, com a pistola apontada para alguém. “Fudeu! O couro vai comer agora. Tem um bandido com um AR-15 pronto pra dar um tiro”...

Minha mente entra em parafuso, quando vejo o alvo. É um casal. Um homem e uma mulher, cada um com uma criança (que não devem ter mais do que três anos) no colo.

Esse é o "neguinho" com quem o PM vinha travando o raivoso embate... É um homem desarmado, com uma criança no colo...

O capitão, a autoridade local, o rei, o ditador, o Justiceiro-da-nova-geração, se ouriça como um pavão... Um pavão covarde, isso é fato... E parte para cima do “neguinho”.

A criança no colo do cidadão se torna invisível. O capitão, a autoridade real, agarra no braço do “neguinho”, enquanto o PM subalterno aponta sua pistola para a “ameaça potencial” (um homem com os dois braços ocupados em segurar uma criança).

O capitão começa a puxar o “neguinho”. Puxa com força. Parece que seu objetivo é fazer o homem largar a criança e fazê-la se estatelar no chão. “Em 15 anos, não vou precisar voltar aqui para matar essa praga”, ele deve pensar.

Depois de muito puxar o braço do “perigoso” suspeito, “armado” com uma criança de colo, alguém consegue pegar a criança. Estou abismado o suficiente para não perceber quem ampara o bebê, se é a mãe ou outra pessoa qualquer que está na rua e se prontifica a ajudar.

O capitão joga o homem no chão, sob o protesto dos moradores, e torce seu braço. Depois o joga na caçamba de um camburão. Sim, estamos no século 21, mas eles ainda existem e os presos vão no bagageiro (mesmo as leis de trânsito proibindo qualquer pessoa de viajar num porta-malas, por questão de segurança), afinal, presos não são “gente”, devem pensar o capitão-autoridade e seus subordinados-autoridades.

Antes de ir embora, ainda sou abordado por um policial do Choque, que acaba que chegar ao local e me pergunta: “O que você está fazendo aqui?”. Antes que eu responda, ele percebe que sou jornalista e fala: “Ah, você é da reportagem”. Uma senhora é abordada da mesma forma, como se fosse crime transitar pela rua: “O que você tá fazendo aqui? Deixa de ser fofoqueira!” (sim, esse foi o linguajar que a recém-chegada autoridade usa).

Resolvo ir embora. Já está na hora do sepultamento do delegado. Antes de ir, vejo o capitão de novo. Afinal, ele é o rei do pedaço! Com uma arma na cintura e três estrelas prateadas no ombro, ele é a lei!

Ele olha para um menino. Sim, um menino, que não deve ter 14 anos de idade. Ele está na rua, montado numa bicicleta, olhando para os policiais. Apenas isso, olhando para os policiais. É o suficiente para que o capitão, gritar, cheio de autoridade: “Tá olhando o quê?! Quer ir pra delegacia também?!”.

O moleque responde, de forma enviesada, que não está fazendo nada. O capitão ameaça partir pra cima. Quem saber torcer seu braço, jogá-lo no chão, empurrá-lo para dentro de um bagageiro, como fez com o homem que até minutos atrás cometeu o crime de descer da favela com uma criança nos braços?

Não. Ele não faz isso. Desiste no meio. Talvez ele já tenha extravasado suas frustrações no favelado minutos atrás. Ele só quer mostrar pro moleque quem é que manda, não precisa mais sujar suas mãos.

É hora de ir embora. Chamo a motorista, entramos no carro e deixamos a Mangueira. Apesar de ter me exposto ao risco, eu estou tranquilo. Sei que dali vou para minha casa. Eu moro no asfalto. Nenhum policial vai tirar meus filhos do meu braço, torcer meu braço e me jogar no chão apenas porque estou andando nas ruas.

Pelo menos, por enquanto, não corro esse risco. Mas quem sabe? Rezo para que meu filho não passe por isso, assim como espero que a criança, arrancada das mãos de um adulto (que deve ser seu pai) antes de completar seus quatro anos de idade, não passe por isso.

Rezo para que, quando chegar a hora dessa mesma criança carregar seu filho no braço, não tenha que ser humilhada novamente. Mas rezo ainda mais para que essa criança, que foi violentada pelo Estado, não decida se voltar contra essa sociedade que é cúmplice dessa violência, contra o Estado que a violentou, contra esses mesmos policiais que um dia a violentaram.

Espero que um dia, essa criança não se torne o criminoso, que assasinará um policial, como o delegado para cujo sepultamento me desloquei depois de deixar a Mangueira.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Tráfico de armas: O mito do fechamento das fronteiras

Nesta quinta-feira (19), acompanhei uma reportagem "exclusiva" da TV Globo que pretendia mostrar as "rotas" de armas que abastecem a criminalidade no Rio de Janeiro. Com grande alarde, a TV Globo mostrava que as armas entram no Brasil por meio do Paraná e Mato Grosso do Sul.

Bem, sobre a matéria, só tenho a dizer que não há nada de novo nela. Fiz uma semelhante, dez anos atrás e antes de mim vários já tinham feito. Paraná e Mato Grosso do Sul, que fazem fronteira com Paraguai e Bolívia (caso do MS), sempre foram os principais pontos de entrada de drogas e de armas estrangeiras no país.

Mas a reportagem foi apenas um gancho para levantar uma questão crucial na segurança pública. Os mitos perpetrados pela polícia e pela imprensa, que são repetidos à exaustão e acabam virando verdades absolutas (ainda que não se sustentem por fatos).

Um dos mitos propagados pela imprensa é que é necessário fechar as fronteiras do país (principalmente com as forças armadas. Sempre elas!), porque as drogas e as armas vêm do exterior. Logo, se as forças armadas conseguirem fazer um bom trabalho nas fronteiras brasileiras, o problema estará resolvido: as facções criminosas brasileiras não terão nem drogas nem armas.

A sustentação desse mito encontra alguns problemas na vida real:

1) Em primeiro lugar, todos sabemos que a maioria das armas usadas pelos criminosos são brasileiras. Um levantamento do Instituto Sou da Paz mostrou que 60% das armas apreendidas pela polícia fluminense são fabricadas no Brasil. Logo, elas não precisam passar por fronteira nenhuma. Elas são feitas aqui, vendidas aqui e passadas para a criminalidade aqui. Como isso acontece? De várias formas: através do extravio de arsenais oficiais e de firmas de segurança; da venda de armas usadas por policiais, colecionadores, atiradores etc.; através do furto de armas legais; através do comércio de armas produzidas muitos anos atrás, quando não havia muito controle sobre esse comércio; e por aí vai. A proporção de munição nacional é praticamente a mesma.

2) Os outros 40% das armas não necessariamente são importadas diretamente pelos criminosos. Muitas delas entram legalmente no Brasil e são, através dos mesmos caminhos descritos acima, desviadas posteriormente para os criminosos.

3) E os fuzis? Os fuzis representam menos de 5% das armas apreendidas no Rio de Janeiro, um dos estados onde mais se apreendem fuzis, segundo os últimos dados divulgados pelo Instituto de Segurança Pública. A maioria deles é, sim, estrangeira (apesar de alguns apreendidos serem da Imbel). E, sim, a maioria deles é importada diretamente pelos criminosos, até porque sua comercialização legal é muito restrita.

4) Se fecharmos as fronteiras, os fuzis deixarão de entrar? Bem, quanto a isso, terei que dividir a resposta em alguns pontos:

4.a) Sinto desapontá-lo, mas ainda que você coloque 100 mil soldados patrulhando as fronteiras do país, será impossível impedir a entrada de um objeto que mede menos de um metro e que pesa menos de 5 kg. Patrulhar fronteiras com forças armadas é custoso e completamente inócuo.

4.b) As autoridades usam justamente o argumento de que 15 mil km de fronteiras são impossíveis de patrulhar. Concordo e discordo. Por mais que seja possível traficar drogas e armas por meio da floresta etc, os traficantes sempre vão preferir as cidades, porque a logística é mais fácil. Mas mesmo as cidades é difícil de patrulhar. Várias cidades brasileiras simplesmente se aglomeram com as estrangeiras. Em Pedro Juan Caballero, no Paraguai, por exemplo, basta atravessar a rua para se chegar a Ponta Porã, no Brasil. Então também é impossível fechar essas fronteiras, a não ser que se ergam barreiras e se limite o tráfico de carros e pessoas entre esses países. Fazer isso sem inteligência é como... deixa me ver... é como... tentar encontrar um fuzil em 15 mil km de fronteiras (ou em pelo menos ruas de 40 cidades).

4.b) A forma mais eficaz de combater o tráfico internacional por meio de fronteira seca, é monitorar os principais fornecedores nos países vizinhos e os compradores brasileiros e já interceptar os carregamentos

4.a) Nem todos fuzis entram pelos 15 mil quilômetros de fronteira seca. Muitos entram por contêineres através dos portos e também através de carga aérea. Tem armas que entram até pelos correios.

4.b) Logo, mesmo que se feche a fronteira seca, as armas continuarão entrando por meio dos portos e aeroportos. Imagine a quantidade de produtos estrangeiros que entram num país com 200 milhões de habitantes diariamente. Agora imagina interceptar produtos ilegais (muitas vezes ocultos dentro de produtos "legais") nessa infinitude de carregamentos internacionais. Interceptá-las sem inteligência é o mesmo que tentar fazer isso na fronteira seca. Agora, some-se a isso, a corrupção sistêmica que atinge os funcionários da Receita Federal e da Polícia Federal nesses pontos de entrada.

Enfim, o problema é um pouco mais complexo do que simplesmente botar Exército para fazer um pente-fino na fronteira.

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

A legalização das drogas e a redução da criminalidade

Logo que comecei esse blog em 2010, eu me posicionei abertamente pela legalização do uso das drogas (de todas elas, sem exceção) e a regulamentação de sua venda. Naquela ocasião, defendi que a medida era essencial para se reduzir a violência atrelada ao tráfico de drogas no país.

Ontem eu li no Jornal O Globo, uma enquete com oito especialistas que responderam a seguinte pergunta: "A legalização das drogas diminuiria a violência no Rio?".

Quatro deles respondiam que sim e davam suas razões e quatro respondiam que não e explicavam seus motivos. A iniciativa do Globo de levantar a questão é de suma importância para se fomentar um debate acerca de alternativas à guerra às drogas.

Eu continuo acreditando em meu posicionamento de 2010 e defendendo a legalização de todas as drogas, acreditando que não cabe ao Estado regular o que cada cidadão adulto deve consumir, desde que isso não afete o coletivo da sociedade.

E também continuo acreditando que haverá, sim, uma redução da violência.

Hoje, no entanto, tenho muitas dúvidas sobre a amplitude dessa redução e sobre o impacto que essa medida teria na dinâmica criminal do Rio de Janeiro, que envolve o controle territorial armado ilegal. Acredito que provavelmente o controle territorial armado continuaria, já que as quadrilhas hoje envolvidas com o tráfico arrumariam outra forma de exploração ilegal do território (funcionando como as milícias).

Vamos analisar a situação ponto a ponto.

1) A legalização das drogas acabaria com o tráfico?
Provavelmente, não. Mas enfraqueceria de forma absurda o poder das facções criminosas. A regulamentação de setores econômicos não é capaz de acabar com a informalidade. Provavelmente, a droga ilegal (não regulamentada) continuaria sendo vendida mais barata e com uma qualidade inferior. Mas esse comércio informal representaria apenas uma parte pequena do comércio de drogas e não movimentaria mais milhões de reais. Com menos dinheiro nas mãos, os criminosos teriam menos poder, menos armas e menos capacidade de corromper agentes do Estado.

2) A legalização reduziria a violência relacionada ao tráfico?
Certamente. O volume de drogas, dinheiro e armas seria bem menor. As disputas tenderiam a ser menos sangrentas. As brigas entre facções seriam menos atrativas e as intervenções policiais seriam menos drásticas e menos violentas.

3) A legalização reduziria a violência como um todo no Rio de Janeiro?
Sim, mas apenas de forma moderada. Muitos dos homicídios no Rio de Janeiro não são sequer relacionados a grupos criminosos organizados ou semiorganizados, mas sim a ações isoladas, como brigas de trânsito, de vizinhos, violência doméstica, desavenças etc. E mesmo aquelas mortes relacionadas ao crime organizado/semiorganizado não podem ser atribuídas exclusivamente ao tráfico de drogas, mas também a milícias, jogo do bicho, esquadrões da morte etc. Então, seria preciso primeiro saber quantas mortes são causadas pelo tráfico. Certamente essas mortes específicas seriam drasticamente reduzidas.

4) A legalização acabaria com o controle territorial armado das favelas do Rio de Janeiro?
Provavelmente não. Depois de mais de 40 anos de controle desses territórios, os criminosos dificilmente abririam mão dessa prática e abandonariam a dominação dessas comunidades. É uma situação muito antiga, então esse sistema informal de liderança, submissão e lealdades está muito entranhado nessas comunidades. Os bandidos sentiriam um impacto imediato, mas em um prazo relativamente curto, eles usariam suas armas para se articular em um novo esquema criminoso, mais próximo de um sistema mafioso. As milícias do Rio de Janeiro já ensinaram o caminho das pedras: venda de proteção, extorsão, controle do transporte, cobrança de taxas de comércio, extorsão de uma forma geral, venda de TV a cabo clandestina, venda de botijões de gás etc. Em algumas comunidades cuja atividade ilegal principal é a venda de drogas, algumas dessas atividades criminosas já começaram a ser praticadas. Além do mais, eles continuariam usando seus territórios para cometer crimes como roubo de carga, roubo de banco, assalto de rua, roubo a lojas e a casas.

Enfim, a legalização das drogas é importante mas não é uma solução mágica. No dia em que o Brasil for maduro o suficiente para legalizar e regulamentar a venda de substâncias alucinógenas, as autoridades precisam se preparar para enfrentar não só o comércio ilegal desses produtos (que provavelmente continuará existindo), mas principalmente para a readequação das quadrilhas criminosas para uma nova dinâmica.